A contaminação do sistema penitenciário brasileiro pelas facções criminosas tem crescido e está presente em todas as unidades da federação, com destaque para o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o CV (Comando Vermelho), nascidos em São Paulo e no Rio de Janeiro, respectivamente.
Levantamento inédito feito pelo Ministério da Justiça e obtido pela Folha mostra que as duas maiores facções do país têm atuado em 24 estados e no Distrito Federal, com um crescimento mais acentuado do Comando Vermelho.
De acordo com os dados, o CV está presente em presídios de 21 unidades da federação, seis a mais do que no ano anterior. O PCC está em 23, duas a mais do que em 2022.
A reportagem teve acesso a mais de 200 documentos restritos e públicos, que vão de relatórios de inteligência, inspeções das defensorias, dados governamentais, de advogados e até de membros de facções. Também esteve no Complexo de São Luís, conhecido como Presídio de Pedrinhas, dez anos após um dos piores massacres da história.
Toda essa apuração está na série de reportagens Presídio e Morte, publicada a partir desta quinta-feira (14).
Um exemplo do que representa a atuação das facções no sistema carcerário e como ela extrapola o limite das grades pôde ser visto no território amazônico, neste ano.
O dia 10 junho de 2023 começou com servidores do sistema prisional do Amazonas sendo ameaçados de morte por membros do Comando Vermelho. Os detentos faccionados se recusavam a voltar às celas. Foi oferecido o valor de R$ 50 mil pela morte de um dos funcionários.
O conflito foi para as ruas de Manaus e, no mesmo mês, um servidor foi alvo de um atentado. Em 15 de julho, um integrante do PCC foi assassinado no bairro da Compensa, teve a cabeça arrancada e os criminosos ainda "jogaram bola" com ela em frente à casa da mãe da principal liderança do PCC no estado.
Registrados em um pequeno intervalo de tempo, esses casos de demonstração de poder do CV na disputa do território amazônico, listados em documento da secretaria de Administração Penitenciária do Amazonas, não são episódios isolados.
Criado em 1979 no presídio Cândido Mendes (RJ), o CV já domina o Amazonas, rota estratégica para o tráfico internacional de drogas. Sinal de uma expansão considerável nos últimos anos, que deixou rastros de mortes e conflitos.
A atuação da facção se tornou uma das principais preocupações das autoridades estaduais, mesmo em uma conjuntura de disseminação de grupos organizados.
O tamanho do Comando Vermelho, do PCC e de outras facções foi mapeado pela Senappen (Secretaria Nacional de Políticas Penais), ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, a partir de dados da Rede Nacional de Inteligência Penitenciária.
Ele aponta que 70 facções criminosas operam nas cadeias.
No último dia 5, por exemplo, Brasil e Paraguai fizeram uma operação conjunta de combate ao tráfico internacional de armas que abasteceria facções brasileiras, em especial PCC e Comando Vermelho.
Segundo especialistas, o cenário é sintomático do descontrole do poder público, que fortalece o crime organizado —tanto pela incapacidade de o sistema isolar lideranças que, mesmo presas, comandam crimes nas ruas, quanto pelas condições dentro das cadeias, catalisadoras do aliciamento de novos integrantes.
O CV teve um crescimento expressivo a partir da expansão para o Norte e Nordeste. Esse processo teve início pelo sul da Bahia até chegar a Salvador, onde firmou uma aliança com a facção Comando da Paz.
No Norte, o CV assumiu o controle do tráfico de drogas no Amazonas após o desmantelamento da facção Família do Norte, que dominava o estado. Brigas entre os três fundadores presos em penitenciárias federais implodiram o grupo.
O Governo do Amazonas afirmou que vem realizando uma série de investimentos na área de segurança pública e no sistema prisional e que a realidade é bem diferente da encontrada em janeiro de 2019.
"Além de melhorias na estrutura das unidades prisionais, houve reforço nos investimentos das medidas de segurança nas unidades prisionais, por meio de tecnologias de monitoramento, controle de comunicações, revistas periódicas, treinamento especializado para agentes penitenciários e colaboradores, visando à segurança das pessoas privadas de liberdade, servidores e colaboradores."
Das 70 facções atuantes no sistema prisional, apenas o Comando Vermelho e o PCC têm abrangência nacional. Outras 13 apresentam atuação regional, enquanto 55 têm influência restrita a nível local.
As autoridades também mapearam o poder das facções. Do total, 21 são consideradas de alto impacto, segundo cálculo que considera a atuação de advogados, força financeira, estrutura hierárquica, quantidade de aliados e também de inimigos no sistema prisional.
O CV é classificado pelas autoridades como de mais difícil monitoramento por não ser tão organizado quanto o grupo paulista —nascido na Casa de Custódia de Taubaté (São Paulo), em 1993—, que tem contabilidade de faccionados e até de armas nas unidades.
Esses grupos surgiram com reivindicações de melhorias nas condições dos presídios. Ao longo do tempo, fortaleceram-se no crime, principalmente no tráfico de drogas. O que veio acompanhado de disputas territoriais, que impactam a vida da população e a segurança pública.
A onda de ataques a prédios e ônibus que atingiu 14 cidades no Rio Grande do Norte no primeiro semestre foi coordenada por uma facção, o Sindicato do Crime. O objetivo era garantir o que promotores classificaram de regalias: ventiladores nas celas e alimentação fornecida pela família.
Dentro dos presídios, os grupos buscam o controle integral —e conseguem muita coisa. Em algumas unidades, os faccionados ficam com chaves de celas, escolhem quem têm prioridade no banho de sol ou mesmo aqueles que terão atendimento médico.
"No Curado [penitenciária de Pernambuco], ainda existe o 'preso chaveiro', que abre a cela para os detentos entrarem e saírem. No Distrito Federal, há unidades em que os faccionados têm prioridade para sair no banho de sol", diz o presidente da Federação Nacional dos Servidores da Polícia Penal, Fernando Anunciação. Segundo ele, há estados sem qualquer controle sobre as facções, e isso favorece a expansão dos grupos.
"Esse poder paralelo dificulta ainda mais o acesso da população carcerária aos poucos serviços oferecidos de educação, saúde e até da defensoria, porque esse acesso precisa ser intermediado pelo chaveiro", diz o defensor público Michel Seichi Nakamura, de Pernambuco.
O estado de Pernambuco disse que aumentou o orçamento para os presídios e empossou 338 policiais penais.
Presos e egressos disseram à Folha que o recrutamento de novos integrantes pelas facções é constante. E as próprias condições do sistema colaboram com isso. Com superlotação dos presídios, não há estrutura de separação de internos, por exemplo.
No país, há um déficit de mais de 162 mil vagas nos presídios estaduais, que reúnem 644 mil presos. Sétimo país em número de habitantes, o Brasil tem a 3ª maior população carcerária do mundo.
Rafael Velasco, secretário Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça e Segurança Pública, admite que a superlotação transforma o problema em um ciclo vicioso. "Com mais pessoas, as facções arregimentam novos soldados, eles acabam indo para rua, cometendo novos crimes, retornando para o sistema prisional e enchendo cada vez mais", disse.
Com mais pessoas, as facções arregimentam novos soldados, eles acabam indo para rua, cometendo novos crimes, retornando para o sistema prisional e enchendo cada vez mais
Para Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o respeito aos direitos humanos e à legislação podem ter impacto no enfraquecimento das facções.
"É possível mudar essa realidade respeitando a Lei de Execuções Penais, que determina separação de presos por tipos de crime, evitando a superlotação e dando condições para o cumprimento da pena para que as facções não se aproveitem para vender facilidades e proteção", diz.
"A maioria das facções se fortalece hoje pelas condições do sistema", acrescenta.
Uma das lacunas apontadas por estudiosos é a ausência de políticas voltadas para os egressos. Intitulado de "O funil de investimentos da Segurança Pública e prisional no Brasil em 2022", estudo inédito do centro de pesquisa O Justa mostra que, a cada R$ 4.389 gastos com as polícias, são investidos R$ 1.050 no sistema penitenciário e apenas R$ 1 em políticas de egresso.
Para a diretora-executiva do Justa, Luciana Zaffalon, o país insiste em um encarceramento de massa que não proporciona benefícios tangíveis à segurança pública. "Ao negligenciar o suporte às pessoas que deixam o sistema prisional, cria-se um vácuo de poder que, no contexto político, é prontamente ocupado pelas facções", avalia. "O estado não fazer é tão importante quanto fazer".